Numa reviravolta de fatos, a segurança pública consolidou-se como eixo do embate político entre esquerda e direita no Brasil e o tema deverá dominar a corrida presidencial de 2026. A mudança que fortaleceu a direita e abalou o governo federal eclodiu da megaoperação policial no Rio de Janeiro contra a facção criminosa Comando Vermelho no último dia 28, com 121 mortos (quatro policiais).
Chamada de massacre, chacina e matança pela esquerda e celebrada como reação exemplar ao terrorismo urbano pela direita, a investida liderada pelo governador Cláudio Castro (PL-RJ) obteve respaldo instantâneo da oposição e da sociedade, em especial daqueles ameaçados pelas armas do crime. O plano de reeleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) voltou a encarar desafios sérios.
Uma prova de que o tema segurança pública entrou de vez na campanha eleitoral foi a declaração de Lula nesta terça-feira (4), de que a ação policial no Rio “extrapolou seu propósito” e configurou uma “matança”. Na primeira crítica pública sobre o caso, o presidente avisou que a Polícia Federal (PF) fará uma investigação paralela para apurar circunstâncias das mortes.
A declaração contrasta com a avaliação do governador Cláudio Castro, que classificou a operação como “sucesso” e proporcional e disse que realizará em breve novas ações semelhantes. Isso evidencia a divergência profunda entre os governos federal e estadual sobre o caso. Na única manifestação de Lula até então, uma nota nas redes sociais, ele só defendeu a necessidade de o país enfrentar o crime.
Lula, que fazia pré-campanha eleitoral sozinho, agora enfrenta cenário mais adverso, no qual o debate nacional se deslocou da pauta econômica, a sua prioridade, para a da violência, mais associada à direita, que também tem maior engajamento. No Congresso, propostas da oposição já concorrem com uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Segurança defendida pelo governo.
O analista Paulo Kramer vê surgir fase favorável à direita, enquanto a esquerda insiste em um discurso indulgente com o crime. “Com a população apoiando as ações policiais, Lula tenta capturar a pauta da segurança, mas enfrenta resistências. A relutância do governo em classificar facções como organizações terroristas — medida já adotada por países vizinhos e cobrada por Washington — também expõe outro ponto vulnerável”, afirma.
Lula entrará no ano eleitoral sob crescente pressão da agenda da segurança
Para analistas ouvidos pela Gazeta do Povo, o presidente pode terminar 2025 amargando a rejeição da PEC da Segurança, tida como imposição de controle federal sobre polícias estaduais, criticada até pelo seu relator Mendonça Filho (União-PE). E pode também entrar em 2026 sob ataque de senadores de direita em meio à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Crime Organizado, no Senado.
De toda forma, esquerda e governo foram forçados a reagir à crescente onda de críticas de que “defendem bandidos”, “são contra a polícia” e “são coniventes com o crime”. Essa narrativa já tinha ganhado um impulso inicial, antes mesmo da megaoperação no Rio, graças à fala de Lula na Indonésia de que o traficante de drogas é “vítima” dos usuários.
Lula tenta reagir a um assunto que é prioridade para a maioria dos eleitores, mas sempre teve dificuldades em abordar e, sobretudo, controlar os desdobramentos. “Prova disso é o duro impacto político sobre ele após a investida do governo fluminense contra a maior facção do estado”, diz o deputado Maurício Marcon (Podemos-RS). “O governo está atordoado”.
Esquerda e direita intensificam confronto de suas visões sobre a segurança
A guerra de narrativas entre saídas da direita – de combate ostensivo para resgatar territórios tomados pelo crime –, e as da esquerda – com ênfase na suposta “inteligência” e na asfixia financeira de facções – revela disputa por poder. Os estados comandados por governadores de direita defendem a autonomia e o Palácio do Planalto, por sua vez, quer padronizar ações e coordenar tudo.
A direita, até então dividida e abalada com a ausência e o silêncio impostos ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) pela Justiça, viu no episódio do Rio a chance de se reorganizar e relançar o discurso da segurança, incluindo a “bukelização”, inspirada no modelo criado pelo presidente de El Salvador, Nayib Bukele, de tolerância zero ao crime e prisão de todos os criminosos.
O Palácio do Planalto tenta reagir à crise com a PEC da Segurança, sua maior aposta para mostrar protagonismo na área de forte demanda popular. Em contraponto, os governadores Cláudio Castro (PL-RJ), Romeu Zema (Novo-MG), Ronaldo Caiado (União-GO), Tarcísio de Freitas (Republicanos-SP) e Jorginho Mello (PL-SC) lançaram o pacto de cooperação “Consórcio da Paz”.
Forte apoio popular à megaoperação policial pegou o governo de surpresa
Lula foi surpreendido pela pronta adesão popular à megaoperação e ficou sem discurso. Parlamentares aliados acusaram o governo do Rio de Janeiro de promover uma “chacina”, mas o movimento teve pouco efeito diante do clima favorável às ações policiais. A partir daí, consolidou-se o embate entre os slogans “inteligência contra letalidade” e “combate total à impunidade”. A Secretaria de Comunicação da Presidência e o marketing oficial precisaram agir e investir pesado na narrativa de ação do governo.
Diante do impacto político da operação, Lula apelou para que “divergências ideológicas” não inviabilizem seu Projeto Antifacção, enviado ao Congresso com pedido de urgência, impulsionado pela megaoperação policial de Castro no Rio. O Palácio do Planalto tenta mostrar liderança e senso de urgência, buscando neutralizar críticas de inércia e recuperar terreno num tema histórico da direita.
O texto prevê penas de 30 anos para membros das organizações criminosas, autoriza infiltração de policiais nas quadrilhas e cria o tipo penal da “organização criminosa qualificada”. A oposição considera a medida insuficiente e pede um pacote abrangente, que inclui restrições à progressão de pena, revisão de garantias processuais e a classificação de facções como terroristas.
Propostas para a segurança pública mobilizam o governo e a oposição
O presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), disse que quer pautar ainda neste ano tanto a PEC da Segurança Pública quanto o Projeto Antifacção, mas até o momento só pautou projetos considerados quebra-galhos, por tratar do tema de forma tangencial. A movimentação evidencia que o assunto da segurança se impôs sobre todas as forças políticas. Governo e oposição competem não apenas pela autoria das propostas, mas ainda pelo posto de mais comprometido com a paz social.
Na quinta-feira (30), apenas dois dias após a megaoperação no Rio contra o Comando Vermelho, Lula sancionou lei que endurece as penas contra quem tenta impedir ou obstruir investigações contra organizações criminosas. O projeto, aprovado no Congresso quase um mês antes, é do senador Sergio Moro (União-PR), ex-juiz responsável por condenar o petista na Lava-Jato.
Especialistas avaliam que o país atravessa o fim de longo ciclo de leniência em relação à insegurança pública. O avanço das facções e da violência em todo o país obrigaram o poder político a reagir. A crise no Rio, ao catalisar esse movimento, consolidou o tema da segurança como divisor de águas para 2026, capaz de redefinir boa parte das estratégias eleitorais até agora.
Especialista não vê chance para o governo construir consensos na área
O consultor financeiro Vandyck Silveira duvida da capacidade do governo de construir consensos para liderar o debate sobre segurança. Segundo ele, a razão está na profunda divergência entre a visão de Lula e seus ministros, e a dos governadores e da oposição. “O único ponto em comum é a ideia de que é preciso fazer algo, muito pouco para se chegar ao entendimento”, diz.
Na sua opinião, o compartilhamento de experiências e a busca de soluções práticas e coordenadas seriam mais eficazes do que a PEC do governo, que, segundo ele, estimula a disputa de poder. “Focar em inteligência policial, rastreamento financeiro e logística do crime é essencial. Mas não se pode deixar de lado a repressão ao poder paralelo das facções”, sublinha.
Silveira lamenta que o governo não mostre disposição em articular saídas concretas com o Legislativo e o Judiciário, nem em controlar as fronteiras, por onde passam drogas e armas que abastecem o crime organizado. “Os vetores precisam estar alinhados na direção certa, inclusive o processo penal, que hoje liberta criminosos sem justificativa para o convívio social.”
Controle territorial pelo crime dominará debates entre governo e oposição
O cientista político Ismael Almeida alerta que a PEC da Segurança pode trocar o problema de gestão pelo da centralização. “Segurança não se administra de Brasília, constrói-se com presença contínua”, diz. Ele lembra que o Sistema Único de Segurança Pública (Susp), de 2018, nunca funcionou totalmente por falta de integração de dados, financiamento e controle.
Para Almeida, constitucionalizar o sistema, como propõe a PEC, pode até ser positivo, desde que venha acompanhado de metas claras, transparência e fortalecimento das polícias estaduais, que enfrentam o crime na linha de frente. “A tragédia do Rio serve de alerta. Se o país não reconstruir o seu modelo de segurança, continuará oscilando entre a omissão e o confronto”, adverte.
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