O entusiasmo da oposição na última quarta-feira (17) ao aprovar a urgência para votação na Câmara do projeto da anistia durou pouco. No dia seguinte, emergiu uma manobra costurada nos bastidores para esvaziar a proposta, substituindo o perdão político por mera revisão de penas, a chamada dosimetria.
Mal recebida pela esquerda e pela direita, a investida ameaça paralisar as votações no Congresso e agravar o impasse institucional.
O Supremo Tribunal Federal (STF) permanece como o principal obstáculo para a anistia. Agora, tende a ficar mais resistente, até mesmo à redução de penas, depois que os Estados Unidos ampliaram as sanções ao ministro Alexandre de Moraes, desta vez para incluir sua esposa e a empresa patrimonial da família nas restrições da Lei Magnitsky.
A decisão de Paulinho da Força (Solidariedade-SP), relator indicado pelo presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), de converter a anistia em dosimetria envolveu os comandantes do Congresso, além do ex-presidente Michel Temer (MDB) e o deputado Aécio Neves (PSDB-MG). A composição do grupo reforçou a leitura de que a articulação envolve interesses de forças centristas e do Judiciário contra a anistia.
Paulinho declarou em entrevistas que descartará o abrangente texto de Marcelo Crivella (Republicanos-RJ), apresentado em 2023 e que poderia ser interpretado como uma anistia até ao ex-presidente Jair Bolsonaro. O relator prometeu fazer um novo projeto, com aval do Judiciário, para buscar apoio parlamentar e alegar que a medida ajudaria a “pacificar o país”. A justificativa, contudo, gerou desconfiança generalizada e uniu críticas de governistas, oposicionistas e analistas políticos.
“PL da dosimetria” provocou protestos imediatos da esquerda e da direita
A estratégia foi recebida com duras críticas tanto da esquerda quanto da direita. Especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo a enxergam como uma tentativa de atores políticos diversos de consolidar a exclusão de Jair Bolsonaro (PL) da eleição de 2026. Paulinho foi logo associado aos ministros do STF, ecoando a tese de que a anistia seria inconstitucional, argumento já usado pela Corte em manifestações públicas e privadas.
O relator se apressou em rebatizar o projeto e condicionar o novo texto às consultas ao STF. As falas irritaram parlamentares do PL e também não convenceram governistas, que rejeitam qualquer forma de alívio nas condenações. A participação de Aécio e Temer em vídeo, na casa do ex-presidente, soou estranha até para a esquerda, que questiona um arranjo fora dos trâmites convencionais do Congresso.
Sem apoio consistente, cresce a percepção de que o debate voltará à estaca zero, prolongando a paralisia do Legislativo. O impasse ameaça virar um tiro no pé: oposição e Centrão, em guerra contra o ativismo judicial, podem impor derrotas tanto ao governo, que depende de votações de projetos populistas em ano pré-eleitoral, quanto ao Judiciário, alvo de contestação crescente dentro do Parlamento.
Líder do PL promete debater com relator o mérito da proposta “sem anistia”
“Em nenhum momento houve discussão do mérito do texto da anistia”, disparou Sóstenes Cavalcante, líder do PL na Câmara. Ele garantiu que o partido lutará até o fim para anistiar todos que considera injustiçados pelo STF. Paulinho, em contrapartida, insiste que busca negociar um “texto pacificado”, alegando conversas já em andamento com o Palácio do Planalto.
O relator afirma querer “agradar a gregos e troianos” em seu parecer, mas descarta a anistia ampla e irrestrita exigida pela oposição. Seu discurso tenta marcar posição de suposto equilíbrio, ainda que com baixa receptividade. Ministros do STF já avisaram que não aceitarão qualquer hipótese de anistia a Bolsonaro, condenado a 27 anos, e ameaçam barrar o avanço da proposta no Congresso.
No Senado, as dificuldades se repetem. O presidente Davi Alcolumbre (União-AP) defende uma “anistia light”, alinhada à ideia de dosimetria. Para ele e seus aliados, o perdão amplo é inviável e pode tensionar ainda mais a relação entre poderes. Essa posição, porém, conflita com a pressão de partidos como PL e PP, que exigem manter a essência da proposta original de Crivella.
Especialistas duvidam de capacidade de relator, Aécio e Temer influírem no jogo
Paulinho disse ter “relação histórica” com o STF e ressaltou sua proximidade com Moraes. “Não queremos resolver um problema e criar conflito com ministros”, afirmou. Para analistas, no entanto, a direita está sendo obrigada a testar a ausência pública de Bolsonaro, que deixou a linha de frente ao ir para a prisão domiciliar. Nesse vácuo, o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos-SP) vinha atuando como líder, mas com cautela para não se expor além da conta.
Para o cientista político Ismael Almeida, nem mesmo a esquerda abraçará o pacto sugerido por Temer em torno da dosimetria. “Aécio perdeu influência na Câmara, filiado a um partido quase extinto, e Temer fala mais pelo MDB que pelo Centrão”, destacou. Para ele, partidos como União, PP e PSD têm mais parlamentares favoráveis à anistia que contrários. O risco é então Paulinho acabar isolado, sem apoio consistente para levar adiante a sua versão anuladora.
O consultor João Henrique Hummel Vieira enxerga a crise de outra forma. Para ele, o primeiro degrau foi vencido com a aprovação da urgência na Câmara, mas o próximo será o Senado. Vieira ressalta sinais claros de tensão entre Alcolumbre e os defensores da anistia, e alerta que o baixo clero da Câmara declarou guerra ao STF, movimento que dificilmente recuará, dadas as mágoas acumuladas.
Mau momento na relação entre Legislativo e Judiciário dificulta acordo
Na visão de Vieira, o baixo clero repete a postura já adotada contra o Executivo, agora voltada ao Judiciário. Com cerca de 130 deputados alvo de ações na Corte, cresce a disposição de enfrentar ministros, até com impeachment como ameaça. Nesse ambiente, Tarcísio coloca o STF no palanque da campanha de 2026, ampliando o peso do embate institucional sobre a disputa presidencial.
O centro político, por sua vez, percebe que a esquerda perde espaço na sociedade. Nesse cálculo, busca ocupar terreno com apoio de Bolsonaro, seja por meio de Tarcísio ou de lideranças como o governador Ratinho Júnior (PSD-PR). A lógica é se aproximar do eleitorado conservador sem perder o diálogo com setores moderados, preservando alianças que podem ser decisivas no próximo ciclo eleitoral.
Parlamentares lembram que anistia, por definição, extingue a punibilidade. Foi assim em casos históricos já aprovados pelo Congresso, inclusive para crimes políticos. Eles alegam que, se não fosse prerrogativa legislativa, essas leis não existiriam. Por isso, rejeitam tentativas de travar a discussão sob alegação de inconstitucionalidade. Para eles, o desconforto do sistema não pode virar veto jurídico.
Negociações em curso encontram acenos tímidos e promessas de obstrução
O senador Ciro Nogueira (PP-PI) declarou seguir defensor da anistia ampla, mas admitiu a necessidade de acordo político. Ele sinalizou que pode discutir a dosimetria como alternativa, desde que resulte de negociação plural. O senador afirmou que há posições extremadas dos dois lados e que o Congresso terá de buscar texto intermediário, capaz de unir correntes distintas e aliviar a crise institucional.
“Tem pessoas como eu, que defendem a ampla e geral, e outras que defendem anistia nenhuma. Então você vai ter que ouvir todas as partes”, disse Ciro, sugerindo concessões. O gesto revela disposição de abrir mão de parte do ideário de Bolsonaro para avançar, ainda que sob risco de desagradar a base mais ideológica. Para ele, sem consenso, a paralisia pode se estender indefinidamente no Parlamento.
Já o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) rejeita categoricamente a dosimetria. Ele acusa Paulinho e aliados de “colaborar com regime de exceção” ao abrir mão da anistia irrestrita. A deputada Bia Kicis (PL-DF) reforça a mesma linha, classificando a proposta de “enterro da anistia”. Entre aliados de Bolsonaro, prevalece um consenso: qualquer texto que não contemple o perdão amplo será rejeitado sem negociação.
Casa Branca acompanha debate da anistia e pode sancionar relator do projeto, diz Eduardo
No cenário externo, Bolsonaro mantém o presidente americano Donald Trump como suporte político. Eduardo Bolsonaro, alinhado à Casa Branca, afirma que Paulinho pode até se tornar alvo de retaliações dos Estados Unidos, a exemplo dos ministros do STF. Alexandre de Moraes, já incluído em listas de sanções como a Lei Magnitsky Global, é citado como precedente de pressão internacional sobre agentes brasileiros.
Esse contexto reforça a polarização: de um lado, o Judiciário e setores de centro tentam emplacar a dosimetria como saída negociada. De outro, aliados de Bolsonaro na direita e boa parte do Centrão insistem na anistia total, ameaçando travar votações e radicalizar o embate institucional. O impasse torna-se, assim, não só disputa sobre um projeto de lei, mas um marco do conflito entre Congresso, STF e governo às vésperas de 2026.