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Como a Rússia tentou difundir propaganda de guerra na Câmara dos Deputados

O deputado russo Dmitry Kuznetsov é alvo de sanções internacionais dos Estados Unidos, Grã-Bretanha, União Europeia e Canadá por envolvimento com a invasão da Ucrânia em 2022. Ele foi recebido com pompa recentemente em um evento na Câmara dos Deputados, em Brasília, onde presidiu mesas de debate e tentou abrir canais para ampliar a influência da Rússia no Brasil. Em entrevista, Kuznetsov tentou difundir propaganda de guerra sobre o sequestro de aproximadamente 19 mil crianças e adolescentes da Ucrânia, o que resultou em um mandato de prisão internacional para o ditador Vladimir Putin.

Kuznetsov disse que as crianças não foram sequestradas, mas resgatadas do fogo cruzado. “Não há lugar para as crianças na frente de batalha. Eu tenho certeza de que quem compactua com o valor tradicional da misericórdia não pode deixar uma criança numa zona de guerra onde bombas e drones estão voando e pessoas estão sendo mortas”, afirmou o deputado à Gazeta do Povo no II Fórum Brics “Valores Tradicionais”, realizado na Câmara entre os dias 16 e 17 de setembro. O Brics é um bloco diplomático formado por Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul, Arábia Saudita, Egito, Etiópia, Emirados Árabes Unidos, Indonésia e Irã.

Mas a ação não é uma atitude humanitária e sim parte de programas estruturados de deportação forçada de população civil, russificação (chamada pelos russos de reeducação) e militarização de crianças, de acordo com dois relatórios da Escola de Saúde Pública da Universidade de Yale (EUA) e comunicados do Tribunal Penal Internacional (TPI) analisados pela reportagem para checar as afirmações do russo.

O “resgate” descrito por Kuznetsov é considerado crime de guerra pelas Convenções de Genebra e configura violação da Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança – que diz que crianças resgatadas do campo de batalha devem ser entregues para custódia de um país neutro no conflito. Segundo a pesquisa de Yale, a Rússia não só custodiou as crianças como as submeteu a campanhas de influência contra o governo ucraniano e em muitos casos as treinou militarmente para um dia atacarem seu próprio país.

O Fórum Brics “Valores Tradicionais” realizado neste mês na Câmara dos Deputados no Brasil é a segunda edição de um evento que surgiu em 2024 na Rússia com o patrocínio da Fundação Humanitária Internacional Zakhar Prilepin, ligada ao partido político Rússia Justa – Pela Verdade, que faz parte da base de apoio do ditador Vladimir Putin. Kuznetsov é o secretário do comitê-geral do partido.

Prilepin, que dá nome à fundação, é um escritor que ficou famoso na Rússia por defender a retomada por Moscou dos territórios que corresponderam ao império russo, dissolvido em 1917 pela Revolução Comunista. Parte desses territórios corresponde a países como Ucrânia, Moldávia, Polônia, Romênia, entre outros. Prilepin se alistou e combateu pela Rússia em territórios ocupados na Ucrânia e relatou suas experiências em redes sociais. Foi um dos expoentes do chamado “Exército TikTok”, formado por influenciadores que se dizem combatentes. Ele é procurado por terrorismo por autoridades ucranianas.

A Embaixada da Ucrânia no Brasil afirmou em nota que “condena categoricamente o envolvimento do deputado da Duma de Estado russa, Dmitry Kuznetsov, em quaisquer eventos no território brasileiro. O político russo mencionado é um instigador direto da guerra da Rússia contra o povo ucraniano”.

Na primeira edição do fórum em novembro de 2024, que foi realizada na Duma (Parlamento) da Rússia e recebeu parlamentares brasileiros, Prilepin, Kuznetsov e seus apoiadores afirmaram que a América Latina e a África acumularam muitas riquezas, mas estariam fechadas para a influência cultural russa. Por isso, seria necessário realizar atividades de aproximação cultural.

Um mês depois, o próprio Putin incumbiu seu governo a não lutar contra seus adversários apenas nos campos de batalha convencionais. “Essa confrontação global decisiva afeta todos o aspectos de nossas vidas: cultura, educação, visão de mundo, economia e tecnologia”, afirmou o ditador no Congresso Rússia Unida, em Moscou, segundo a agência estatal Ria Novosti.

Na Câmara dos Deputados no Brasil neste mês, Kuznetsov criou um prêmio literário em parceria com a Academia Brasiliense de Letras com o alegado objetivo de estreitar laços culturais com o Brasil e com os demais países do Brics. Parlamentares brasileiros diretamente envolvidos com a organização do encontro disseram não compactuar com os sequestros de crianças e adolescentes ucranianos pela Rússia e justificaram a iniciativa como uma forma de manter diálogo com todas as nações.

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Estudo de Yale descobriu 210 centros de reeducação e militarização de jovens

Enquanto no Brasil a campanha de influência cultural do Kremlin está relativamente no início, na Rússia o governo promove reeducação forçada e militarização de crianças e jovens de regiões invadidas na Ucrânia e de repúblicas da federação russa localizadas mais distante de Moscou.

O Laboratório de Pesquisa Humanitária da Universidade de Yale (EUA) divulgou, no último dia 16 de setembro, um estudo baseado em imagens de satélite, entrevistas com testemunhas e análise de comunicação oficial de instituições russas. Ele identificou 210 locais para onde crianças e adolescentes foram enviados para programas de reeducação e treinamento militar forçado em larga escala.

A entidade reuniu provas de que crianças que moravam em territórios invadidos pela Rússia na Ucrânia foram mandadas para esses locais. O relatório “Crianças roubadas da Ucrânia: dentro da rede russa de reeducação e militarização” pode ser acessado em inglês neste link.

Quatro tipos de origem dessas crianças foram identificadas: 1) crianças tiradas temporariamente de suas famílias ucranianas para passar por um processo de reeducação; 2) órfãos ou deficientes retirados de orfanatos e instituições de saúde ucranianas; 3) crianças separadas dos pais de forma forçada durante os combates nos primeiros meses da invasão em 2022; e 4) crianças retiradas diretamente da guarda de seus pais por oficiais políticos em campos de filtragem estabelecidos na cidade ucraniana de Mariupol em 2022.

Nas instalações descobertas pela universidade, as atividades impostas às crianças iam desde palestras sobre história russa e temas “patrióticos”, visitas a museus e locais históricos até campeonatos de tiro e arremesso de granadas. O objetivo era enfraquecer as raízes ucranianas dos jovens e transformá-los em futuros soldados russos. Em uma instalação específica, jovens foram treinados em paraquedismo. Em geral, as atividades militares também incluíam treinamento tático e em primeiros socorros de combate.

Segundo os pesquisadores de Yale, parte dessas crianças foi devolvida às suas famílias, mas outras foram colocadas em programas de adoção por famílias russas ou mandadas para orfanatos e instituições de saúde da Rússia. Há relatos de que a Rússia criou um catálogo de adoção on line para que as crianças sequestradas fossem absorvidas pela nação de forma mais rápida.

Um estudo anterior de Yale, datado de 2023, havia estimado em cerca de 6 mil o número de crianças e jovens ucranianos com idades entre 4 e 17 anos levadas para a Rússia. O estudo deste ano fala em 19.500. Autoridades políticas da Ucrânia dizem que o número real pode chegar a centenas de milhares. O governo ucraniano diz que aproximadamente 1.900 crianças foram localizadas e repatriadas até agora.

O ditador russo Vladimir Putin é alvo de um mandado de prisão emitido pelo Tribunal Penal Internacional por participação direta e pelos atos de pessoas sob seu comando que executaram ações de transferência e deportação ilegal de crianças dos territórios temporariamente ocupados pela Rússia na Ucrânia. Também responde pelo mesmo crime Maria Alekseyevna Lvova-Belova, comissária de direitos da criança na Rússia.

O mais recente estudo de Yale identificou por imagens de satélite e números de registro que um avião do Departamento Presidencial de Gestão de Propriedade, diretamente ligado ao gabinete de Putin, foi usado tanto para retirar as crianças da Ucrânia como para levá-las para programas de adoção forçada e treinamento militar.

Deputado da Rússia diz que não há crianças ucranianas sequestradas

O parlamentar russo Dmitry Kuznetsov afirmou à reportagem, sem apresentar nenhuma evidência concreta, que as famílias ucranianas teriam abandonado suas próprias crianças.

“Por favor, se alguma mãe, pai ou parente perdeu um filho na linha de frente do lado ucraniano e quer que ele seja devolvido, aqui está meu contato. Sou deputado da Duma Estatal. Escreva-me e farei tudo para garantir que esta criança seja devolvida à sua mãe ou pai, caso tenha acontecido por acaso que a linha de frente os separou de seus pais”, disse o deputado.

“Se esses pais, mães e familiares das chamadas crianças sequestradas realmente existissem, eles certamente já teriam entrado em contato comigo”, disse Kuznetsov.

Mas a Rússia não divulga listas de nomes de crianças nem para onde foram levadas, algumas até recebem novas identidades e documentos russos. Isso dificulta muito a realização de pedidos de repatriação. Há evidências concretas de que parte das crianças ucranianas foram levadas para locais a milhares de quilômetros de distância da Ucrânia, como a Sibéria e até a Mongólia.

A organização Bring Kids Back UA (Traga as crianças para casa, em inglês) documenta casos de crianças encontradas. Entre os relatos está o do menino Oleksandr, de 12 anos, que só foi localizado e resgatado depois de conseguir um telefone emprestado para comunicar à família sua localização em uma instituição de “reeducação”. Ilya, de 11 anos, só foi localizado e repatriado porque um de seus tios o viu em um vídeo de propaganda da Rússia.

A Ucrânia e países europeus investem em esforços de investigação para localizar o paradeiro das crianças desaparecidas. O país chegou a convidar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva para intermediar a devolução das crianças, mas o brasileiro nunca respondeu ao pedido.

Por outro lado, Kuznetsov alegou à reportagem que tais crianças “não existem”. Ele baseou seu raciocínio na assertiva de que seus familiares ucranianos não escreveram à Duma (Parlamento) da Rússia pedindo sua devolução. Para tentar sustentar seu argumento, ele disse receber regularmente diversos pedidos de ajuda de parentes ucranianos de supostos prisioneiros políticos que estariam sob custódia da Ucrânia por terem apoiado a invasão russa em seu país.

O deputado apresentou um estudo russo que cita a abertura de cerca de 180 mil procedimentos judiciais na Justiça da Ucrânia relacionados à guerra. Ele disse que esses casos se refeririam a pessoas presas por crime de opinião, pessoas confundidas com colaboradores russos, cidadãos que ajudaram de fato as forças russas e ucranianos que trabalharam em instituições russas.

A reportagem apurou que as afirmações configuram uma distorção de dados. A Procuradoria Geral da Ucrânia registrou desde o início da guerra, em um sistema unificado, 211 mil crimes relacionados à agressão russa, dos quais 180 mil são considerados crimes de guerra. Eles englobam os crimes cometidos por militares russos contra civis ucranianos em território invadido e casos de cidadãos que se aproveitaram da guerra para cometer crimes ou ajudaram as forças russas no processo de invasão. Eles podem resultar em multas ou até penas de prisão.

A comissão de inquérito do Conselho de Direitos Humanos da ONU já apresentou diversos relatórios sobre abusos na invasão da Ucrânia. O mais recente, de abril de 2025, contabiliza apenas 5 casos concretos de prisões arbitrárias e abusos de direitos humanos cometidos contra civis acusados de ajudar as forças invasoras da Rússia. A Ucrânia opera desde 2022 sob lei marcial por causa da guerra.

Kuznetsov diz que valores tradicionais não são conservadores nem progressistas

Dmitry Kuznetsov participou da abertura e comandou duas mesas de debates durante o fórum na Câmara dos Deputados: “Valores Tradicionais Compartilhados pelas Nações do Brics” e “União Internacional dos Pais”, que tratou de valores de família e educação de filhos.

Em seus discursos nos últimos anos, o ditador Vladimir Putin vem tentando ganhar a confiança de políticos conservadores dos Estados Unidos com declarações supostamente contrárias aos valores progressistas.

A Gazeta do Povo perguntou a Kuznetsov que tipo de valores a Rússia, o Brasil e as demais nações dos Brics têm em comum. O político russo disse que eles ficam no meio, entre conservadorismo e progressismo.

“Por um lado, existe um valor como o desenvolvimento, porque todos os nossos povos precisam de desenvolvimento, precisam de progresso. Por outro lado, existe um valor como a misericórdia. E esse valor não muda com o tempo. Portanto, nossa lista não é conservadora nem progressista, é perpendicular. É o que une nossos povos e o que divide”, afirmou. Ele defendeu que a integração de valores pode começar por meio da literatura. Um prêmio foi instituído no âmbito dos Brics e selecionou escritores finalistas do Brasil, da Rússia, da Índia, da China, da África do Sul, dos Emirados Árabes Unidos, da Etiópia, do Irã, da Indonésia e do Egito.

A embaixada da Ucrânia afirmou em nota que “os únicos valores tradicionais que existem para ele [Kuznetsov] são o imperialismo russo, o assassinato de civis, o desejo de conquistar e humilhar outros povos e o genocídio do povo ucraniano. As mãos de Dmitry Kuznetsov estão cobertas de sangue, e as portas de qualquer político e cidadão em um país tão pacífico como o Brasil deveriam estar fechadas para sempre para este belicista”.

Questionado sobre a presença de deputados da Rússia, com Kuznetsov e o deputado Vladimir Zuev, que o acompanhava no evento, enquanto o ditador Vladimir Putin é procurado por envolvimento no sequestro de crianças ucranianas, o deputado Ronaldo Nogueira (Republicanos-RS), presidente da Frente Parlamentar PROSUL, no entanto, defendeu a aproximação de diferentes perspectivas como condição para o entendimento e a cooperação. 

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