A proposta que partidos do “Centrão” tiraram da cartola – ou das gavetas do Congresso – para enterrar a autonomia do Banco Central (BC) chamou a atenção pela destreza dos parlamentares para o retrocesso. Num movimento rápido e orquestrado, líderes do PP, União Brasil, PL, MDB e do PSB assinaram na terça-feira (2) um requerimento de urgência para alterar a Lei Complementar 179, sancionada há quatro anos pelo então presidente Jair Bolsonaro (PL), que consolidou a autonomia do BC.
A iniciativa – que acabou se configurando um “tiro pela culatra” pela repercussão negativa – acendeu um alerta sobre a possibilidade de desmonte institucional em relação à autoridade monetária. A autonomia do BC foi conquistada a duras penas, após três décadas de debate, e as discussões atuais giravam em torno da ampliação da independência para a esfera financeira. Da noite para o dia, porém, o Congresso fez movimento em direção contrária.
A articulação, encabeçada pelo deputado Claudio Cajado (PP-BA) e pelo líder do PP na Câmara, Doutor Luizinho (RJ), contou com o apoio de 300 parlamentares. Na prática, Cajado ressuscitou um projeto de 2021 que concede ao Congresso a prerrogativa de demitir diretores do Banco Central sua atuação seja considerada “incompatível com os interesses nacionais”. O texto, originalmente de autoria do ex-deputado Camilo Capiberibe (PSB-AP), não detalha os critérios para essa classificação.
Segundo a lei de autonomia em vigor, o afastamento de membros da diretoria colegiada é de competência exclusiva do presidente da República – e em situações muito específicas, como condenação em última instância ou prática de improbidade administrativa. Pelo projeto, a exoneração passa a ser possível com a aprovação por maioria absoluta das duas casas legislativas.
A justificativa propalada é a falta de indicação sobre quem fiscaliza o desempenho dos integrantes do BC, além da concentração do poder de exoneração em uma única pessoa. Contudo, a urgência com que o requerimento foi aprovado sugere outros motivos (leia mais adiante).
“Uma proposta que permite ao Congresso demitir diretores do Banco Central acaba representando um risco muito sério para a credibilidade institucional do Brasil, que já não é o nosso forte”, afirma Gabriel Cecco, especialista da Valor Investimentos.
“O argumento que eles usam — de dar mais instrumentos para fiscalização — apesar de tentarem fazer parecer legítimo, na prática abre uma porta muito perigosa para ingerência política sobre uma instituição que deveria estar blindada de pressões de curto prazo. E é um retrocesso gigante, algo ainda pior do que tínhamos antes da autonomia.”
Proposta traduz embate entre Poderes
As críticas consideram também um cenário de disputa de poder. O projeto é tido como mais uma forma do Parlamento avançar sobre as prerrogativas do Executivo.
“O que vejo é um movimento do Congresso tentando assumir atribuições que cabem ao presidente, como aconteceu com o orçamento secreto e as emendas parlamentares”, diz o economista Denis Medina, professor da Faculdade do Comércio de São Paulo (FAC-SP). “Representa mais um risco de deterioração das relações dos Poderes e uma mudança no centro de poder, do Executivo para o Legislativo.”
O problema maior, no entanto, é a subjetividade da expressão “interesses nacionais” no projeto, que pode, segundo o economista, suscitar interpretações distintas e sujeitar a gestão aos “humores e interesses políticos do Congresso”.
O economista lembra que o espírito da autonomia é justamente isolar a autoridade monetária de pressões políticas, ajudando no controle das expectativas e na contenção de preços que retroalimentam a inflação.
“Subordinar o Banco Central a interesses políticos, seja do presidente ou do Congresso, aumenta o risco de populismo, que pode corroer o poder de compra, elevar a inflação e gerar problemas econômicos ainda maiores”, afirma Medina.
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Atuação técnica do Banco Central exige blindagem
Carlos Henrique, Chief Operating Officer da Frente Corretora, diz que a proposta vai na contramão da necessidade de credibilidade da condução da política monetária. “Quando os agentes econômicos, investidores, empresários e consumidores confiam que o BC agirá de forma técnica e independente, as expectativas de inflação se mantêm ancoradas.”
Para ele, a “ameaça direta à autonomia da instituição” retira a blindagem necessária para os diretores atuarem tecnicamente.
A lei atual só permite o afastamento em situações específicas: a pedido do titular do cargo em caso de enfermidade que incapacite o exercício da função; em casos de condenação, mediante decisão transitada em julgado; por prática de ato de improbidade administrativa ou quando apresentarem “comprovado e recorrente desempenho insuficiente” para o alcance dos objetivos do BC.
“[Com o projeto] parlamentares poderiam usar a ameaça de remoção para influenciar decisões”, afirma. Sobretudo as determinantes para a economia a médio e longo prazo, como, por exemplo, a manutenção de juros elevados para combater a inflação, impopulares no curto prazo.
Neste sentido, Henrique destaca que um dos pilares da autonomia, que define que o presidente do BC terá mandato de quatro anos não coincidente com o do presidente da República, separa o ciclo político do ciclo de política monetária, diz. “A submissão da diretoria ao ciclo político geraa incerteza e instabilidade”, diz.
Vale lembrar que foi exatamente o aparato legal da autonomia que possibilitou ao ex-presidente do BC, Roberto Campos Neto, conduzir de forma independente a política de juros apesar das críticas recorrentes do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), pressionando pela queda das taxas.
“Antes da autonomia, a política monetária mudava completamente a cada novo presidente, já que o Banco Central era subordinado diretamente à Presidência da República”, lembra Medina, da FAC. “Hoje, o sistema funciona de forma muito mais saudável. E a mudança que está sendo proposta vai em outra direção.”
Ofensiva reforçou pressão para venda do Master ao BRB
A tentativa de influência política sobre a autoridade monetária por parte do parlamentares, além do cabo de guerra com o Planalto, coincidiu com o momento em que o BC se preparava para finalizar a análise da venda de parte do Banco Master para o Banco de Brasília (BRB), estatal controlada pelo governo do Distrito Federal. Em março, o BC iniciou a análise do caso, que apresentava, segundo rumores do mercado, “arestas obscuras”.
O Banco Master é controlado por Daniel Vorcaro, um banqueiro com intenso trânsito entre parlamentares e no governo, incluindo o ex-ministro Guido Mantega. O negócio atraiu atenção do Ministério Público do Distrito Federal, que exigiu anuência do Legislativo local, posteriormente concedida pela Câmara Legislativa do DF e pelo governador Ibaneis Rocha (MDB).
A atuação do Master, por sua vez, já havia motivado ações do BC. O banco cresceu com captações asseguradas pelo Fundo Garantidor de Crédito (FGC, espécie de seguro para os investidores), aplicando o dinheiro em ativos arriscados e de baixa liquidez. A venda da carteira para um banco estatal seria oportuna e vantajosa para Vorcaro.
Diretor do Banco Central “entrou na mira” do Centão
Atento aos riscos, o BC chegou a mudar as regras do FGC para mitigar a vulnerabilidade dos bancos menores e a socialização de perdas pelo sistema financeiro. Também excluiu ativos sensíveis da operação, como por exemplo, R$ 33 bilhões em Certificados de Depósitos Bancários (CDBs) com taxas de 120% do CDI, bem acima da média do mercado. O valor inicial do negócio, de R$ 75 bilhões, foi reduzido para R$ 23,9 bilhões.
Um dos mais resistentes à transação, o diretor de Organização do Sistema Financeiro, Renato de Brito Gomes, responsável principal pela área de análise dessas transações, havia declarado em agosto que não havia prazo para uma decisão. Nos bastidores, a leitura é que Gomes teria desagradado quem desejava um desfecho rápido e virou alvo do Centrão.
O efeito foi contrário. Na noite de quarta-feira (3), um dia após a investida contra o BC e cinco meses após o anúncio da operação, o regulador rejeitou a compra de parte do Master pelo BRB, deixando o banco privado na berlinda.
Para Carlos Henrique, da Frente Corretora, o caso do Master funcionou como “um importante teste de estresse que, apesar de gerar instabilidade a curto prazo, revela e reforça a maturidade da regulação bancária no país”.
Para ele, o crescimento acelerado do banco, “baseado em um descasamento de prazos e liquidez, captando recursos de curto prazo com CDBs de alta remuneração para investir em ativos de longo prazo e baixa liquidez, como precatórios, se mostrou insustentável e gerou um risco sistêmico relevante”.
“A decisão do Banco Central de barrar a compra pelo BRB foi técnica e acertada, sinalizando que a governança e a proteção ao sistema prevaleceram sobre possíveis pressões políticas”, afirma.
Os próximos passos do caso, incluindo a possibilidade de recurso ou liquidação do negócio, ainda não foram definidos. O requerimento de urgência do projeto de Cajado não tem previsão – nem clima – para ser votado.
O mercado já sinalizou desconforto, e a repercussão negativa tende a crescer. “Em vez de constranger o Banco Central, o movimento expõe o país a mais riscos e pode isolar politicamente os defensores do projeto”, avalia Cecco, da Valor Investimentos.
“Minha avaliação é clara: a independência do Banco Central é um ativo do Brasil, uma conquista, e qualquer tentativa de enfraquecê-la custa caro.”