A conversa que diplomatas de Brasil e Estados Unidos costuram entre Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Donald Trump, prevista para os próximos dias, dificilmente repetirá a “excelente química” exibida no brevíssimo e informal encontro dos presidentes nos bastidores da ONU na última terça-feira (23).
Analistas ouvidos pela Gazeta do Povo avaliam que divergências ideológicas entre ambos seguirão profundas e irreconciliáveis. A expectativa, contudo, é de que o diálogo planejado deles busque apartar a pauta econômica dos confrontos políticos, graças à forte pressão de empresários e investidores.
A abertura dada por Trump em discurso na Assembleia Geral da ONU pode gerar oportunidades de avanços concretos nas áreas de comércio e investimentos, em pontos nos quais Washington e Brasília convergem. Inicia-se então a negociação para baixar tarifas de 50% a diferentes produtos brasileiros.
Para o analista financeiro VanDyck Silveira, o aceno de Trump não garante a melhora do status da relação bilateral, o pior da história, pois o real impasse está na oposição ideológica, sem margem para recuo. “Trump abriu-se à conversa com Lula, mas a pauta política e inegociável para ambos”, observa.
Julgamento de Bolsonaro continua a tensionar a relação dos presidentes
A dura pena aplicada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) deve ficar de fora da conversa, mesmo tendo sido o principal fundamento do tarifaço. Lula diz que não pode interferir no julgamento e Trump já deu mostras de que não vai suavizar críticas ao ativismo judicial no país.
Silveira explica que o presidente americano descarta enfrentar pressões das Big Techs (empresas de tecnologia donas das redes sociais) e favorecer Lula, mantendo então a condenação à “caça às bruxas” do STF contra cidadãos brasileiros e americanos, em nome da soberania dos EUA. “Prevalecerá o pragmatismo, focado em negócios insubstituíveis”, diz.
Nesse clima, Ismar Becker, conselheiro de exportadoras, vê como acertada a reação positiva dos setores financeiro e empresarial à abertura de Trump. “Mesmo que tudo pareça uma armadilha dele, disposto a repetir com Lula os constrangimentos já aplicados a outros líderes, os bônus virão”, avalia.
Becker não prevê ganhos pelo menos no período de um mês após as áreas técnicas ajustarem posições. “O diálogo é movido pela pressão de empresas americanas, do café e da carne caros e de raros fornecedores de perfil semelhante”, resume. “Baixar a tarifa para 20% já os ajudaria a lidarem com as insatisfações”, diz.
Para especialista, Trump obrigou Lula a escolher entre ideologia e economia
Márcio Coimbra, presidente do Instituto Monitor da Democracia, destaca as consequências práticas do encontro inaugural entre Lula e Trump: “Lula está encurralado entre a visão ideológica e a realidade econômica. Trump, por sua vez, testou limites, abriu a porta e colocou a decisão nas mãos do Brasil”.
Na avaliação do cientista político, se Lula não aproveitar a porta aberta, vai evidenciar que a sua agenda política e eleitoral está acima dos interesses nacionais. “Em cenário de incerteza global, fechar portas a um parceiro do peso dos EUA é um risco elevado para quem busca a reeleição”, acrescenta.
Para o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP), aliado de Trump, o afago dele foi só estratégia de negociação. “Ele fez exatamente o que sempre praticou: elevou a tensão, aplicou pressão e depois reposicionou-se com mais força à mesa”, disse. Para a oposição, o gesto do líder americano mostrou método.
Na guerra de narrativas entre governistas e oposição, uma convergência: a possibilidade de Lula sofrer constrangimento público durante a conversa, embora o próprio dizer não temer isso. O chanceler Mauro Vieira propôs o contato por videoconferência ou telefone, alegando restrições de agenda.
Etanol, metais críticos e data centers podem entrar em negociação
As perspectivas de barganha econômica durante a possível conversa entre Lula e Trump incluem temas como data centers de Big Techs, taxação de etanol e exploração de minerais críticos. Parece improvável que entre em discussão os vistos de autoridades ou a aplicação da Lei Magnitsky contra ministros do STF e os seus parentes.
Apesar das articulações, analistas lembram que o secretário de Estado dos EUA, Marco Rubio, continuou disparando duras críticas ao ativismo judicial brasileiro nos últimos dias, as mesmas do discurso de Trump na ONU, e manteve-se impassível quando o líder americano revelou simpatia por Lula.
O jornal Estado de S.Paulo afirmou na sexta-feira (26) que empresários brasileiros teriam tentado criar canais de diálogo com os Estados Unidos, incluindo os irmãos Batista, do grupo JBS. O jornal também alegou que teriam ocorrido contatos diplomáticos entre autoridades brasileiras e o representante comercial de Washington, Jamieson Green, e o assessor presidencial Richard Grenell antes dos presidentes se encontrarem nos Estados Unidos. Mas com os dados levantados pela publicação não é possível saber se esses supostos encontros influíram na fala de Trump na ONU sobre Lula.
Falas recentes de Trump e Lula acentuam suas diferenças profundas em quase tudo
O primeiro encontro entre Lula e Trump durou 39 segundos, segundo o americano. Eles se cruzaram nos bastidores da 80ª Assembleia da ONU, se abraçaram e combinaram marcar reunião, que tende a ser virtual. O fato foi confirmado por Lula no dia seguinte: “o que parecia impossível aconteceu”.
Na tribuna da ONU, a fala de Lula foi claramente antiamericana. Denunciou a ingerência dos EUA no Brasil e outros países, rechaçou sanções a ministros do STF e familiares e vinculou a “defesa inegociável” da democracia à recusa de anistia a Bolsonaro, lembrando que não há pacificação com impunidade.
Em seguida, Trump na mesma tribuna justificou medidas unilaterais como instrumentos de proteção dos interesses americanos e acusou o Brasil de censura, corrupção judicial e perseguição política. Junto com o ataque, o afago: Lula parece “homem bom” e houve com ele “excelente química”.
O tal “momento mágico” revelou-se a chance de abrir canal de comunicação entre antagonismos profundos revelados pelos discursos. Assim, o abraço não dissolve impasses, mas projeta-se novo capítulo nas atuais relações Brasil-Estados Unidos, onde retórica e pragmatismo caminham lado a lado.