Um projeto do Senado que estabelece um teto para o endividamento da União parece, à primeira vista, uma boa ideia para controlar os gastos do governo. Da forma como foi construído, porém, o texto gera risco de moratória (calote) da dívida pública e enfraquece o controle da inflação pelo Banco Central.
Trata-se do projeto de resolução n.º 8, de 2025. Como a Constituição afirma que compete ao Senado definir um limite para a dívida, basta a aprovação da Casa para que a proposta entre em vigor, sem necessidade de passar pela Câmara nem por sanção presidencial.
Após uma onda de críticas do Banco Central, da equipe econômica e do mercado financeiro, o projeto foi retirado da pauta da Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado, onde tinha votação marcada para esta terça-feira (23). De acordo com a assessoria do senador Oriovisto Guimarães (PSDB-PR), relator da proposta, o texto passará por “ajustes” e não há previsão de votação.
Embora nem o BC nem o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tenham se manifestado publicamente, fontes ouvidas pela Gazeta do Povo confirmam o intenso ruído gerado nos bastidores.
De autoria do senador Renan Calheiros (MDB-AL), o projeto de resolução busca regulamentar artigos previstos na Constituição e na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) que vêm, há décadas, sendo postergados, exatamente porque abrem possibilidade de calote da dívida pública.
Um deles é da Constituição, que dá ao Senado a função de definir os “limites gerais para a dívida total da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”. Outro artigo da LRF estabelece que, em até 90 dias, o Presidente da República precisa enviar ao Senado “os números da dívida consolidada da União, dos Estados e dos Municípios”.
O texto de Calheiros estabeleceu duas travas para o endividamento federal: a dívida bruta da União não poderia superar 80% do Produto Interno Bruto (PIB) nem ultrapassar 6,5 vezes a receita corrente líquida. O parecer do relator deixou claro que esse limite se aplicaria apenas à União, já que estados e municípios têm regras próprias.
Caso os limites fossem rompidos, a União ficaria sujeita às penalidades do Artigo 31 da LRF, que inclui a limitação de empenho para garantir superávits primários, a obrigação de o Executivo enviar ao Senado, em até 30 dias, um relatório com as causas do descumprimento e o plano de ajuste para reconduzir a dívida ao limite em 12 meses.
Seria exigido um corte mínimo de 25% já no primeiro quadrimestre, medida considerada inviável à primeira vista, já que a maior parte das despesas federais — como previdência, saúde, educação e o serviço da dívida — é obrigatória e só poderia ser reduzida por meio de mudança constitucional.
Na prática, isso poderia levar a um travamento da máquina pública, em um cenário comparável — embora não idêntico — ao shutdown dos Estados Unidos, quando não há acordo político sobre o teto da dívida.
Além disso, a União ficaria impedida de emitir novos títulos públicos, reduzindo drasticamente sua capacidade de financiamento. Em última instância, a regra acena para um risco real de calote, afetando o cidadão comum de forma indireta, já que bancos e fundos — emissores de produtos como CDBs — mantêm parte relevante de seus recursos aplicados em títulos do Tesouro.
Basta observar os números para entender a preocupação que se instalou entre economistas. Hoje, a dívida bruta de todos os entes da federação já atinge 77,6% do PIB e deverá fechar o ano em 80% do PIB, segundo dados do Boletim Focus do BC.
Já dívida da União — que representa 74,1% do PIB — pode atingir os 80% do PIB em até três anos, segundo projeções de mercado, que apontam para uma dívida bruta total de 84,1% do PIB em 2026, 87,3% do PIB em 2027 e 89,4% do PIB em 2028.
Banco Central sai enfraquecido
As avaliações de especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo traduzem a ambiguidade da proposta. O lado positivo é colocar na mesa a discussão da necessidade da responsabilidade fiscal. Mas tem potencial de atropelar os rumos da política fiscal e monetária do país.
O economista Armando Castelar, do Instituto Brasileiro de Economia (FGV-Ibre), destaca a necessidade de frear o crescimento dos gastos públicos. “O aumento de gastos é prejudicial porque o governo é o grande devedor, e a elevação da Selic encarece tanto o financiamento da dívida quanto o investimento privado”, afirmou.
A solução proposta, no entanto, é questionada. “O Parlamento tenta forçar o governo a adotar uma postura mais responsável, mas da forma como está formulada, a regra não funciona e ainda adiciona novos riscos”, diz Juliana Inhasz, professora do Insper.
Um dos principais é o impacto sobre o Banco Central, que pode ficar engessado em sua atuação e perder um de seus principais instrumentos para manter a inflação dentro da meta. Nos bastidores, a instituição já alertou que o projeto significaria um enfraquecimento de sua capacidade institucional na condução da política monetária.
O BC funciona, em essência, como guardião dos títulos públicos. É por meio da compra e venda desses papéis que garante liquidez à economia diante de entradas e saídas de recursos — como fluxos de dólares — e consegue controlar a inflação, mantendo a taxa Selic alinhada ao objetivo definido pelo Comitê de Política Monetária (Copom).
Se a emissão de dívida for limitada, o Banco Central perde justamente parte desses instrumentos, incluindo as chamadas “operações compromissadas”, fundamentais para retirar o excesso de dinheiro em circulação. Restariam apenas mecanismos mais lentos e menos eficazes, como o aumento dos depósitos compulsórios ou o uso da taxa de redesconto. “Isso reduz a capacidade prática do BC de agir contra a inflação”, resume Inhasz.
Para Manoel Pires, do Instituto Brasileiro de Economia (FGV-Ibre), nesse sentido, a proposta gera mais problemas do que soluções. “A política monetária é feita a partir de compra e venda de títulos públicos”, diz. “Um limite de dívida pode criar constrangimento para o BC perseguir a meta de inflação.”
Outro ponto sensível é o impacto sobre as operações cambiais. Atualmente, quando a autoridade monetária atua para reforçar as reservas internacionais, injeta reais na economia, que depois precisam ser esterilizados para não pressionar a taxa de juros. Com a imposição do teto da dívida, esse mecanismo ficaria limitado.
Rigidez do Orçamento aumenta risco de moratória da dívida
A maior preocupação, no entanto, diz respeito ao próprio funcionamento do orçamento: como a maior parte das despesas é de caráter obrigatório, seria impossível reduzir gastos de uma hora para outra se o limite fosse atingido. Nesse cenário, o governo poderia não conseguir rolar a dívida nem pagar juros, alimentando o temor de moratória.
“É possível que o governo não consiga se manter dentro dessa regra”, avalia Armando Castelar, economista do Ibre. “Com isso, o risco de calote aumenta muito, os juros sobem ainda mais, e o mercado passa a operar em um ambiente de insegurança e incerteza.”
Há dúvidas técnicas e incertezas na interpretação sobre os efeitos práticos do projeto, especialmente na aplicação do artigo 31 da LRF, que estabelece punições para o descumprimento do limite de endividamento. Pelo texto, o governo fica proibido de realizar novas operações de crédito, exceto aquelas destinadas ao pagamento de dívidas mobiliárias — ou seja, títulos públicos emitidos para rolar a dívida existente.
O problema é que não está claro se essa exceção inclui o pagamento de juros ou apenas do principal. Na prática, isso significa que, embora o governo ainda pudesse emitir títulos para honrar parte da dívida, haveria risco de paralisação parcial caso os pagamentos de juros ficassem comprometidos.
Para Felipe Salto, economista-chefe da Warren Investimentos, mesmo que a própia LRF preveja regras de exceção, blindando a gestão da dívida mobiliária, o volume de operações compromissadas e títulos livres na carteira do BC, assim como o cumprimento de obrigações de operações de crédito do governo federal, “não podem, simplesmente, ficar sujeitas a limites soltos, que não atentem para os reais desafios das contas públicas.”
Para Castelar, mesmo que não haja uma moratória formal, “a simples dúvida já seria suficiente para elevar a percepção de risco e afetar a estabilidade financeira.” A medida aumentaria a incerteza, prejudicando a credibilidade do país e elevando o risco sobre os papéis da União. “Para o mercado, estar próximo dessa situação sempre representa um risco, podendo elevar juros e gerar nervosismo”, afirma o economista.
Proposta não mira raiz do problema
Para Manoel Pires, a regra do teto cria um problema que hoje não temos. “Além da possibilidade de ‘default’, a proposta atua no sintoma e não na causa”, avalia. Ele lembra ainda que o modelo americano de teto da dívida mostra a fragilidade da regra. Nos EUA, sempre que se está perto do limite, o Congresso amplia esse limite. Esse tipo de instabilidade poderia se repetir aqui”, alerta.
Para Inhazs, do Insper, o ponto central é que o projeto não propõe qualquer disciplina nos gastos. “Não adianta continuar gastando e tentar colocar o freio na hora do pagamento da dívida, depois que se endividou”, afirma. Ela avalia que o Senado mostra uma certa ignorância quanto ao que é o cenário fiscal e a dívida pública no Brasil.
“A tentativa de zerar os gastos discricionários caso o teto seja ultrapassado não é razoável. É um percentual muito pequeno do Orçamento e, além de comprometer serviços, não reduziria a dívidapor que os juros rolando que fazem que ela aumente naturalmente.”
O problema maior, reitera o economista, são as despesas obrigatórias e os mínimos constitucionais de Saúde e Educação. “As condições que temos comprometem a condução da política fiscal”, diz. “É preciso tocar a reforma administrativa, andar com a tributária, focar na disciplina fiscal.”
Castelar também avalia que a proposta “age tarde demais”. “O principal problema a ser atacado é o aumento de gastos, dentro de uma regra fiscal sustentável que não existe atualmente”, afirma. Segundo ele, o ‘teto de gastos’ – regra fiscal que vigorou no governo Michel Temer (MDB) – era mais eficiente porque atacava o problema na origem. “A experiência entre 2016 e 2021 mostrou melhores resultados: juros mais baixos, custo de capital menor e maior previsibilidade para investidores”, afirma.
A proposta do teto da dívida, por sua vez, funciona como um paliativo tardio, poruqe só vai ser acionada quando a situação já tiver se deteriorado. “Isso cria incentivos para empurrar a crise para governos seguintes”, diz o economista do Ibre. “A intenção de limitar o endividamento é positiva, mas o caminho escolhido não é o mais eficiente. O melhor seria retomar uma âncora sobre o gasto público, que já provou funcionar.”