Nome cotado da direita para a eleição presidencial de 2026, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), tem incluído referências bíblicas em seus discursos para tentar estreitar os laços com o eleitorado evangélico. As citações costumam apontar uma suposta impiedade de seus adversários enquanto o apresentam como “administrador fiel” e líder eleito por Deus para conduzir seu povo à vitória.
Tarcísio mostra uma fluência bíblica superior à média dos políticos. É capaz de comentar os textos em vez de apenas citar versículos de cor — como o ex-presidente Jair Bolsonaro, que gosta de repetir “conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (João 8, 32), ou mesmo Dilma Rousseff, que, na campanha de 2014, recitou um conhecido salmo num encontro com mulheres evangélicas: “Feliz a nação cujo Deus é o Senhor”.
O governador tem suas passagens bíblicas preferidas repetidas em eventos como a Marcha para Jesus e cultos evangélicos, como a parábola do mordomo infiel (que ele já associou tanto ao presidente Lula quanto ao ex-coach Pablo Marçal); histórias de personagens que foram eleitos por Deus para uma missão mesmo que, aos olhos humanos, não parecessem os melhores candidatos; textos sobre dons espirituais; e um versículo da carta de Paulo aos Romanos: “Alegrem-se na esperança, sejam pacientes na tribulação e perseverem na oração”.
Filho de pai católico e mãe evangélica da Igreja Pentecostal Vida Nova, Tarcísio cresceu transitando entre os dois ramos do cristianismo. Hoje, ele se apresenta como católico, mas sempre lembra que foi com “Dona Maria Alice” que aprendeu sobre “as coisas de Deus”. Em agosto, discursou num evento para empreendedores na Igreja Batista da Lagoinha em Alphaville. Citou um trecho da carta de Paulo aos Efésios sobre dons espirituais e deu um “testemunho” — relatos sobre a ação divina na vida dos fiéis.
Reforçando o tempo todo que para Deus nada é impossível, narrou episódios de sua vida, como o câncer que teve quando estudava no Instituto Militar de Engenharia (IME) e sobre sua aprovação, em primeiro lugar, para um concurso da Câmara dos Deputados. Sem tempo para estudar, ele achava que não tinha chance, mas a mãe lhe disse: “Deus vai te abençoar, não é pelo seu merecimento. Deus vai te abençoar pela infinita misericórdia”. Também destacou o apoio da primeira-dama Cristiane Freitas, a quem chamou de “mulher virtuosa”, citando o trecho bíblico de Provérbios.
— Nesse discurso, Tarcísio juntou tudo o que os evangélicos gostam de ouvir. Falou da formação religiosa recebida da mãe, da superação da enfermidade, valorizou o papel da esposa e da família e se arriscou a tratar de um texto bíblico menos conhecido — analisa Valdinei Ferreira, pastor e professor da Faculdade de Teologia da Igreja Presbiteriana Independente. — Se Bolsonaro já foi abraçado pelos evangélicos, Tarcísio pode conquistar um apoio ainda maior. Sem ter uma postura agressiva contra outros modelos de família e comportamentos sexuais, ele encara uma versão mais light do conservadorismo evangélico, e tem familiaridade com a retórica das igrejas.
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O discurso do governador na Lagoinha foi emendado por ele próprio de madrugada, quando foram incluídas a passagem do livro de Efésios. A destreza bíblica de Tarcísio chama atenção até de líderes evangélicos. “Está pregando melhor que muito pastor já”, disse o apóstolo Estevam Hernandes, da Igreja Renascer em Cristo, na Marcha para Jesus de 2024. “Tenho muito medo que o senhor largue a política e vire pastor”, brincou o bispo Samuel Ferreira, da Assembleia de Deus no Brás, igreja à qual Tarcísio compareceu em junho deste ano.
Tarcísio disse, aliás, que foi na igreja do Brás que recebeu uma “revelação” e teve “a certeza de que Deus ia me abençoar com esta missão”, referindo-se à disputa pelo governo paulista em 2022.
Figuras de ‘má fama’
Pastor da Igreja Batista de Água Branca, em São Paulo, Kenner Terra diz que Tarcísio recorre a textos sagrados com três objetivos: identificar seus adversários políticos a figuras bíblicas de má fama, colocar-se como um líder em luta contra as trevas e se associar a personagens “eleitos por Deus”. Por isso, investe numa leitura “alegórica” das Escrituras. O uso da parábola do mordomo infiel exemplifica essa estratégia. O texto, de difícil interpretação, fala sobre um administrador que esbanja os bens de seu patrão e permite que os devedores paguem menos do que realmente deviam. Ainda assim, sua “astúcia” é elogiada.
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Segundo Terra, intérpretes entendem que a parte da dívida que o administrador perdoa é uma espécie de comissão que ele, como cobrador, receberia. Por abrir mão do que era seu é que ele é elogiado. A leitura de Tarcísio, no entanto, passa ao largo das dificuldades exegéticas e se limita à conclusão de que “aquele que é infiel no pouco será infiel no muito”, como diz um dos versículos mais conhecidos da parábola.
— Tarcísio foca na expressão “mordomo infiel” para identificar Lula a expressões negativas do texto bíblico e identificar a si mesmo e quem está do lado dele a expressões positivas. Ele usa o texto para reforçar a divisão entre “nós e eles” — diz Terra, que desenvolve pesquisa de pós-doutorado em ciência da religião na PUC-SP.
“Tem gente no Brasil que quer trazer o mordomo infiel de volta”, alertava Tarcísio em 2022, quando Lula e Bolsonaro se enfrentaram nas eleições.
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— Nas comunidades evangélicas, a Bíblia é interpretada à luz das lutas da vida cotidiana; Tarcísio aplica essa estratégica aos textos bíblicos para se comunicar diretamente com o povo, especialmente com a maioria pentecostal, sem precisar da mediação de pastor, como Bolsonaro precisou de Silas Malafaia. Ele se posiciona como liderança espiritual — explica o pastor.
Para Magali Cunha, pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião (Iser), assim como Bolsonaro, Tarcísio “se coloca com um personagem pancristão” ao propor o diálogo com os evangélicos mantendo sua identidade católica:
— O uso que Tarcísio faz desses textos tem relação com o que é dito no cotidiano das igrejas. São passagens sobre espiritualidade e perseverança e são recados políticos. Ele está dizendo: “Eu tenho a mesma fé que vocês, Deus está me usando para falar com vocês”. Essa estratégia terá algum efeito, mas não há garantia de que será aceita automaticamente pelo eleitor evangélico.