O avanço da China sobre o agronegócio brasileiro não se limita ao crescente volume de importações, que hoje representa quase um terço de toda a produção nacional do campo enviada ao exterior. Empresas públicas e privadas do país asiático estão cada vez mais presentes em toda a cadeia produtiva do setor: da produção de sementes e comércio de insumos até a operação de terminais portuários para o escoamento de commodities.
Uma das maiores tradings de grãos atualmente no Brasil é a Cofco International, de controle estatal chinês. A empresa, que opera em 36 países, entrou no mercado brasileiro uma década atrás, quando adquiriu o controle da holandesa Nidera, que já atuava no Brasil com a venda de sementes de cultivares de soja e milho, e da Noble Agri, então uma unidade do Noble Group, de Singapura, que já contava com quatro usinas de cana-de-açúcar no Centro-Sul brasileiro.
Em 2018, a Nidera foi vendida pela Cofco para a Syngenta, maior fabricante mundial de defensivos agrícolas e uma das maiores fornecedoras de sementes, que um ano antes também passou a ser controlada por uma empresa chinesa, a ChemChina.
A lista de investimentos em empresas brasileiras por companhias chinesas nos últimos anos é extensa. Inclui, por exemplo, as empresas de trading e fornecimento de insumos Fiagril, do Mato Grosso, e Belagrícola, no Paraná, que foram compradas em 2017 pela antiga Hunan Dakang, atual PengDu, braço agrícola da Shanghai Pegxin Group.
No mesmo ano, os ativos de sementes de milho da Dow AgroSciences no Brasil foram adquiridos pelas chinesas Yuan LongPing High-Tech Agriculture e pelo CITIC Agri Fund Management, por US$ 1,1 bilhão. O negócio incluiu o acesso total ao banco de germoplasma de milho brasileiro.
China investe em logística e portos brasileiros para escoar produção do agro
No setor de logística, um dos maiores destaques ocorreu em 2022, quando a Cofco arrematou a concessão, por 25 anos, do terminal STS-11, no Porto de Santos (SP).
A primeira fase do empreendimento foi inaugurada em março deste ano, após um investimento de US$ 285 milhões. Com a conclusão das obras no ano que vem, a empresa espera alcançar 14,5 milhões de toneladas de grãos movimentadas por ano, no terminal que será o maior de seu portfólio fora da China.
Recentemente, a gigante chinesa adquiriu 23 locomotivas e 979 vagões para fazer o transporte de até 4 milhões de toneladas de soja, milho e açúcar por ano para o terminal no Porto de Santos. Os grãos devem chegar pela ferrovia da Rumo que liga Rondonópolis (MT) ao município paulista, enquanto o derivado da cana deve usar o terminal rodoferroviário da Cofco em Votuporanga (SP).
Essa não é a única participação chinesa em terminais portuários brasileiros. Em 2017, o controle do Terminal de Contêineres de Paranaguá (TCP) foi adquirido pela China Merchants Port (CMPort), operadora com sede em Hong Kong, por US$ 935 milhões, o equivalente a R$ 2,9 bilhões à época.
Desde que passou a integrar o portfólio da CMPort, que conta com terminais portuários em outros 25 países, o TCP avançou de uma movimentação anual de 810 mil TEUs (unidade equivalente a um contêiner de 20 pés) para 1,56 milhão de TEUs, em 2024, segundo comunicado recente da operadora.
No ano passado, o TCP passou a integrar a chamada rota ESA, que liga terminais portuários de Buenos Aires, Montevideo e Santos diretamente ao mercado asiático, passando por Singapura, Hong Kong e pelas cidades chinesas de Yantian, Ningbo e Xangai.
Em abril, foi inaugurada outra rota inédita entre Brasil e China, ligando os portos de Santana (AP) e Salvador (BA) ao Porto de Gaolan, na cidade de Zhuhai. O novo corredor marítimo consolida os terminais brasileiros como hubs para o escoamento de produtos como soja, carne bovina e celulose, além de facilitar a importação de insumos industriais e tecnológicos vindos da Ásia.
No início deste ano, a CMPort anunciou ainda um acordo para comprar o único terminal portuário brasileiro privado preparado para operar navios petroleiros de grande porte (VLCC), no Porto do Açu (RJ).
O leilão do Tecon 10, o maior terminal de contêineres do Brasil, no Porto de Santos, ainda sem data marcada, também já desperta o interesse de operadoras da China. A Cosco, estatal chinesa de transporte marítimo, e a CMPorts, teriam procurado o governo e a Agência Nacional de Transporte Aquaviários (Antaq) para obter mais informações sobre o certame.
As empresas poderiam se apresentar em consórcio ainda com outra estatal do país asiático, a China Communications Construction Company (CCCC).
Com investimento previsto de R$ 6,45 bilhões e um contrato com prazo inicial de 25 anos, prorrogáveis por até 70 anos, o empreendimento colocará o Porto de Santos entre os 20 maiores do mundo, permitindo uma movimentação de 10 milhões de contêineres por ano.
Ainda que o Brasil tenha optado por não aderir à Iniciativa Cinturão e Rota, também conhecido como Nova Rota da Seda, Lula prometeu, no fim do ano passado, uma “sinergia” entre o programa chinês e projetos de interesse do Brasil do Novo PAC.
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A Nova Rota da Seda consiste em um programa trilionário chinês iniciado em 2013 que prevê a realização de obras e investimentos para ampliar mercados para a China e a presença do país no mundo por meio de obras de infraestrutura, incluindo rodovias, ferrovias, portos e avanços no setor energético, como oleodutos e gasodutos.
Um dos grandes empreendimentos da iniciativa na América do Sul é o Porto de Chancay, no Peru, inaugurado em novembro do ano passado pela Cosco. O megaporto, resultado de investimentos de US$ 1,3 bilhão do governo chinês, deve reduzir custos e prazos para importações e exportações entre a China e países latino-americanos pelo Oceano Pacífico.
Em junho, Brasil e China assinaram um acordo de estudos para a construção de uma ferrovia para ligar o porto chinês no Peru ao território brasileiro. O governo brasileiro prevê uma rota que passe pelos estados do Acre e Tocantins, conectando-se à Ferrovia de Integração Oeste-Leste (Fiol), na Bahia.
A própria Fiol, projeto de 1.527 km entre Ilhéus e Caetité, na Bahia, terá investimento chinês, conforme acordo assinado entre o Fundo Chinês para Investimento na América Latina (Clai-Fund), a China Railway Engineering Group (Crec), o governo baiano e a Bahia Mineração.
Investimentos incluem ainda produção de SAF e máquinas agrícolas e financiamento
O avanço do capital chinês no campo brasileiro promete prosseguir nos próximos anos. Em maio, durante visita de comitiva do governo à China, empresários do país asiático anunciaram um total de R$ 27 bilhões em investimentos no Brasil por meio da Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (ApexBrasil).
Participante do encontro, a companhia chinesa Envision, afirmou que investirá até R$ 5 bilhões na produção de combustível de aviação sustentável (SAF) a partir da cana-de-açúcar no Brasil.
A Raízen, principal empresa no setor sucroalcooleiro do país, anunciou a assinatura de um memorando de entendimento com a empresa de Hong Kong SAFPAC também para produção de SAF, porém na região Ásia-Pacífico.
O acordo prevê o uso da tecnologia Alcohol-to-Jet, que transforma o etanol, inclusive o de segunda geração, obtido a partir do bagaço de cana, em querosene renovável para aeronaves.
A SAFPAC projeta que a parceria se desenvolverá em três fases: a primeira, entre 2025 e 2026, com demanda anual estimada em 170 mil toneladas de etanol; a segunda, entre 2027 e 2029, com 285 mil toneladas anuais; e a terceira, entre 2030 e 2033, com 500 mil toneladas por ano.
Já o grupo de soluções financeiras REAG Capital Holding e o conglomerado estatal chinês CITIC Construction divulgaram um trabalho de cooperação para conversão de pastagens degradadas em sistemas de produção agrícola e florestal sustentável no Brasil.
Na mesma missão oficial, o Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA) e o Ministério da Agricultura e Assuntos Rurais da China assinaram ainda um memorando de entendimento para impulsionar a mecanização e a tecnificação da agricultura familiar no Brasil.
O documento prevê o fortalecimento das relações institucionais, de investimento e de pesquisa entre China e Brasil no âmbito do setor agrícola de pequena escala, com foco no avanço de tecnologias, maquinário especializado e a aplicação de energia renovável, especialmente voltada para a agricultura familiar e pequenos agricultores.
De forma indireta, a China também tem ampliado seus investimentos no setor agropecuário brasileiro por meio de instituições financeiras. Em 2012, o Industrial and Commercial Bank of China (ICBC) obteve autorização para operar no Brasil oferecendo financiamento ao comércio bilateral e à infraestrutura e manufatura nacionais, com forte potencial para atender demandas do agronegócio.
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O banco foi o responsável por realizar, em 2023, a primeira transação no Brasil com moeda chinesa, sem a utilização do dólar, modelo defendido por Lula para transações comerciais entre membros do Brics.
Em junho do ano passado, o Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) firmou um contrato com o China Development Bank para financiar projetos de infraestrutura e indústria no Brasil, nas áreas de energia elétrica, manufatura, agricultura, mineração, água, mudança climática e desenvolvimento verde.
Vendas para China representam 30% das exportações do agro brasileiro
O avanço do apetite chinês pela produção brasileira nos últimos anos impressiona. Segundo dados do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), em 2024, o Brasil exportou US$ 164,3 bilhões em produtos agropecuários. Desse montante, US$ 49,7 bilhões, ou 30,2%, corresponderam a vendas para a China, principal parceiro comercial brasileiro.
Para se ter uma ideia, o valor é mais que o dobro do que importaram em produtos agropecuários, juntos, os 27 países da União Europeia – US$ 32,2 bilhões, ou 14,1% do total.
Os principais itens brasileiros embarcados para o país asiático no setor, em 2024, foram soja (US$ 31,6 bilhões), carne bovina (US$ 6 bilhões), celulose (US$ 4,6 bilhões), algodão (US$ 1,7 bilhão), açúcar (US$ 1,4 bilhão) e carne de frango (US$ 1,3 bilhão).
No ano 2000, a participação da China nas receitas com exportações do agro brasileiro era de 2,7%, e o país asiático era apenas o sexto maior destino do setor, atrás de UE, Estados Unidos, Argentina, Japão e Reino Unido.
Enquanto o valor total das exportações agropecuárias do Brasil cresceu 699% ao longo de 24 anos, o montante gasto anualmente pela China em produtos brasileiros do setor disparou 8.747%.
Somente no atual mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a China já assinou 11 acordos de abertura de mercados agropecuários para produtos brasileiros. Em maio de 2023, passou a permitir a entrada de farinha de aves e suínos.
Em novembro de 2024, durante visita ao Brasil do presidente chinês, Xi Jinping, foi permitido o envio à China de uvas frescas; sorgo; gergelim; farinha de peixe, óleo de peixe e outras proteínas e gorduras derivadas de pescado para alimentação animal.
Este ano, entre abril e maio, a China liberou para produtores brasileiros exportações de pescados de origem extrativa; carne de pato, carne de peru; miúdos de frango (coração, fígado e moela); grãos derivados da indústria do etanol de milho (DDG e DDGs) e farelo de amendoim.
No fim de julho, dias após o anúncio da tarifa de 50% do governo americano sobre produtos brasileiros, o país asiático aprovou a habilitação de 183 novas empresas brasileiras para exportação de café brasileiro, 30 para gergelim, 46 para farinhas de aves e suínos e outras quatro para a venda de farinha de pescado.