Em uma nova ofensiva contra o que chamam de “interferência do Judiciário”, líderes da oposição anunciaram na terça-feira (5) que irão retomar a tramitação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que extingue o foro privilegiado para autoridades. A medida é apresentada como uma resposta institucional às sucessivas tensões entre o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal (STF). Isso porque o Supremo possui inquéritos em segredo de justiça contra parlamentares que, segundo críticos, poderia usar para fazer pressão política.
A proposta, que tramita desde 2013, foi apresentada pelo então senador Álvaro Dias e tem como objetivo restringir drasticamente o alcance do foro especial por prerrogativa de função — popularmente conhecido como foro privilegiado. A versão aprovada no Senado em 2017 limita o foro apenas aos presidentes da República, da Câmara, do Senado e do STF. Atualmente, cerca de 55 mil autoridades no Brasil têm acesso a esse benefício, que garante o julgamento apenas por tribunais superiores, mesmo por crimes comuns.
O líder da oposição no Senado, Rogério Marinho (PL-RN), classificou o foro como um “escudo de proteção” e afirmou que sua extinção é fundamental para a liberdade de expressão parlamentar. “O foro privilegiado virou uma arma de subordinação do Legislativo. Há dezenas de inquéritos em segredo de justiça que podem atingir parlamentares. Dizem que o Parlamento não vota determinadas matérias porque está subordinado a outro poder. Como a gente resolve o problema? Que os parlamentares sejam tratados como cidadãos comuns”, afirmou Marinho.
Segundo ele, o fim do foro pode “pacificar a política” ao colocar todos sob as mesmas regras da justiça comum. A medida é defendida como forma de devolver equilíbrio entre os Poderes.
O foro por prerrogativa de função foi criado para proteger o exercício de cargos públicos de alta responsabilidade, evitando perseguições judiciais. No entanto, a prática tornou-se alvo de críticas por ser vista como um privilégio injustificável e, muitas vezes, como instrumento de impunidade ou como ferramenta política do Judiciário.
Na prática, autoridades com foro são julgadas diretamente por tribunais superiores, como o STF, o que pode resultar em processos mais lentos e com menor índice de condenações. Além disso, os julgamentos são concentrados nas mãos de poucos ministros — o que, segundo críticos, enfraquece a imparcialidade e a independência entre os Poderes.
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Foro privilegiado é visto por parlamentares como forma de negociar com STF e se proteger
A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) do fim do foro foi aprovada por unanimidade no Senado em 2017, mas desde então está parada na Câmara dos Deputados. O texto chegou a ser relatado pelo ex-deputado e atual senador Efraim Filho (União-PB), na Comissão Especial, e avançou, mas nunca chegou a ser votado em plenário.
Desde então, líderes de diferentes partidos já prometeram pautar a PEC 333/17, mas recuaram — em parte por resistência de parlamentares que se sentem expostos a investigações e em razão da relação delicada com o Judiciário.
A deputada federal Adriana Ventura (SP) disse que apresentou mais de 33 vezes o pedido de inclusão da Proposta de Emenda à Constituição na pauta do plenário. Para ela, o foro “virou sinônimo de impunidade” e “serve apenas para blindar autoridades que cometem crimes comuns”.
“Tenho cobrado constantemente a presidência da Casa. Mas o que vemos é uma resistência velada, porque muitos ainda enxergam o foro como um escudo pessoal. Isso precisa mudar. Não podemos legislar pensando em proteger cargos ou interesses próprios”, declarou.
Adriana Ventura também reforça que “essa é uma pauta urgente e necessária” para mostrar que “ninguém está acima da lei”. Ela ainda lembra que aproximadamente 700 mil brasileiros assinaram uma petição pedindo o fim do foro privilegiado. “É nossa obrigação honrar esse clamor. A democracia só se fortalece quando o privilégio dá lugar à responsabilidade”, complementa.
O último requerimento para inclusão da proposta na Ordem do Dia foi apresentado pelo deputado federal Ubiratan Sanderson (PL-RS) em 16 de julho deste ano. Agora, a tentativa da oposição será protocolar um novo requerimento de urgência para acelerar a votação.
PEC do fim do foro pode reacender embate entre Legislativo e STF
Se for retomada com força, a PEC do fim do foro pode reacender o embate institucional entre Legislativo e STF, num momento em que crescem os questionamentos sobre os limites de atuação do Judiciário.
Nos últimos anos, o STF ampliou sua atuação sobre o Congresso com decisões que afetaram diretamente mandatos e prerrogativas parlamentares. Entre os casos mais emblemáticos estão os de:
- Daniel Silveira (PTB-RJ) foi condenado e preso por ataques ao Supremo. Ele recebeu indulto do ex-presidente Jair Bolsonaro, mas seu mandato foi posteriormente cassado pelo STF.
- Deltan Dallagnol (à época no Podemos-PR, hoje no Novo-PR) teve seu mandato de deputado federal cassado por decisão do TSE, com base em um julgamento derivado de uma decisão administrativa do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).
- Carla Zambelli (PL-SP) e Marcos do Val (Podemos-ES) se tornaram alvos de inquéritos no STF ligados à suposta tentativa de golpe de Estado e ataques à democracia.
O avanço das investigações tem criado uma percepção entre parlamentares de que o foro, antes uma salvaguarda, se tornou um instrumento de controle e retaliação.
Nos bastidores, congressistas admitem que a resistência ao debate sobre o fim do foro vem tanto do medo de perseguição quanto do receio de abrir mão de um instrumento de proteção pessoal.
Movimento civil é motor histórico da PEC contra o foro
Entre os principais movimentos que impulsionaram a discussão sobre o fim do foro privilegiado no país está o Ranking dos Políticos, uma plataforma da sociedade civil que há anos atua pressionando o Congresso por mais transparência, fim de privilégios e responsabilidade com o dinheiro público.
Segundo Luan Sperandio, diretor de operações do Ranking dos Políticos, a proposta de extinção do foro sempre esteve entre as mais relevantes para a base de apoiadores e ativistas do movimento — especialmente no auge da Operação Lava Jato, quando ficou evidente o abismo entre a justiça comum e a proteção oferecida aos detentores de cargos.
“Na Nova República, o foro se tornou um obstáculo à responsabilização das autoridades. Em 2017, enquanto [a Justiça Federal de] Curitiba somava centenas de réus, condenações e prisões, no STF havia cerca de 250 políticos investigados — mas apenas seis respondiam a processo, três haviam sido presos preventivamente e nenhum condenado”, afirma Sperandio.
Ele também destaca que, além do foro, a suspensão da prisão após condenação em segunda instância retirou das leis brasileiras um dos principais elementos de dissuasão para crimes de corrupção e lavagem de dinheiro. “O fim dessas garantias pode tornar o crime mais vantajoso para quem ocupa altos cargos”, alerta.
Sobre a resistência à Proposta de Emenda à Constituição na Câmara, Sperandio aponta uma mudança de postura: “No início houve um corporativismo forte. Depois, com o avanço dos inquéritos no STF, muitos passaram a temer se expor. O ambiente mudou. A sociedade civil também se retraiu, especialmente após o enfraquecimento da Lava Jato”.
Ele destaca que, mesmo em meio às tensões entre Legislativo e STF, o tema continua relevante e necessário: “O combate ao crime de colarinho branco não pode ser feito com base em casuísmos. O fim do foro e a volta da prisão em segunda instância são pilares essenciais para o país avançar institucionalmente.”
Foro virou instrumento de poder do Judiciário sobre o Legislativo, diz especialista
Para analistas políticos, o avanço da Proposta de Emenda à Constituição do foro privilegiado pode se tornar um divisor de águas: ou o Congresso retoma as rédeas de sua independência, ou confirma a tese de que vive sob tutela de outro poder.
O cientista político Leonardo Barreto avalia que a lógica do foro se inverteu. “O foro privilegiado, que antes era visto como uma proteção aos políticos, se tornou uma ameaça. O STF passou a usar processos contra parlamentares como instrumento de barganha em torno dos seus próprios interesses. Por exemplo: ameaçar dar andamento a investigações se o presidente da Câmara ou do Senado pautar projetos que limitem os poderes individuais dos ministros.”
Segundo ele, o foro tornou-se um instrumento de poder do Judiciário sobre o Legislativo, o que explicaria a mudança de postura de muitos parlamentares: “Virou ameaça. Por isso tantos deputados e senadores agora defendem o fim do foro.”
Cientista político afirma que Centrão precisa do foro para sobreviver
Já o cientista político Tiago Valenciano alerta para o risco do fim do foro se transformar numa armadilha: “O foro foi criado para garantir tranquilidade ao exercício da função política. Mas, hoje, a manutenção desse benefício parece servir apenas ao Poder Judiciário. O Legislativo e o Executivo ficaram expostos.”
Valenciano também vê a pauta como uma bandeira política: “O fim do foro privilegiado virou um discurso pronto para agradar o eleitor. Muitos parlamentares usam isso como palanque, dizendo que estão abrindo mão de privilégios, quando, na verdade, sabem que a aprovação da PEC poderia deixá-los vulneráveis.”
Ele lembra que, nas últimas eleições, deputados federais usaram a eleição como refúgio para manter o foro, evitando o risco de perder o mandato e responder na primeira instância. “Boa parte do Centrão está há décadas na política e precisa do foro para sobreviver. Por isso, mesmo com discurso bonito, a proposta não avança.”